3 de abr. de 2009

Júlio Verne, o cyberpunk do Século XIX

Francis Benett, dono do Earth Herald, o jornal mais poderoso do mundo, está sentado à mesa em Nova York. Na sua frente, uma tela grande com a imagem ao vivo da sala de jantar de sua mansão em Paris. Apesar do fuso horário, era um hábito que ele costumava cultivar sempre que possível: almoçar com sua mulher, mesmo estando separados por milhares de quilômetros. Benett, o homem que tinha o poder de decidir até “o que fazer com a Lua”, sentia-se bem face à face com a adorada esposa, vendo e falando com ela através de “aparelhos fonotelefóticos”.

Chia McKenzie usou o cartão de crédito para fazer o download de um conjunto preto, composto por calça e blusão. No dia seguinte, teria uma reunião importante em um site, que ainda estava sendo preparado. Na hora combinada, se conectou. Colocou os sensores de dedos, os óculos especiais. Em poucos segundos foi recebida por uma secretária que a encaminhou ao local onde pelo menos cinco pessoas aguardavam. ”Este site é muito bonito”, disse tentando ser amável com a anfitriã. “Se você for salvá-lo, gostaria de visitá-lo outras vezes, com mais calma”.

Mais de um século separam os dois parágrafos acima. O primeiro, fragmento do ensaio "O dia de um jornalista americano em 2889”, foi escrito em 1889 por Júlio Verne, o pai da ficção científica. Incrível, não? Já o segundo parágrafo sintetiza duas passagens do livro Idoru (pronuncia-se Aidoru), escrito em 1996, pelo americano William Gibson, um dos expoentes do gênero que ficou conhecido como cyberpunk.

Antes de criar Francis Benett, o jornalista do título, o mestre Júlio Verne já havia escrito histórias suficientes para garantir, ainda hoje, uma legião de seguidores. Como eterna recomendação de leitura, citamos alguns aqui: Cinco Semanas num Balão, Viagem ao Centro da Terra, Da Terra à Lua, 20.000 Léguas Submarinas, A Volta ao Mundo em 80 Dias e A Ilha Misteriosa. Verne, é preciso que se recorde, viveu entre 1828 e 1905. Até hoje é um dos autores mais lidos em todo o mundo.

Willian Gibson ganhou projeção em 1984, quando publicou a novela Neuromancer, um sucesso estrondoso que valeu ao autor os principais prêmios atribuídos à chamada literatura de ficção. Foi neste livro que apareceu, pela primeira vez, a expressão cyberespaço, cunhada por Gibson para denominar o ambiente em que estamos ingressando, mas cujo extrato havia sido imaginado quase um século antes por Júlio Verne.

Grande parte da trama de “O dia de um jornalista...” gira em torno do poder exercido por um magnata da imprensa norte-americana, tendo como pano de fundo um cenário sombrio para a época: cidades com dez milhões de habitantes, prédios de 300 metros de altura, aerocarros e aeroônibus rasgando os céus, imensos transformadores de energia elétrica e mísseis transmissores de vírus capazes de destruir uma nação em pouquíssimas horas.

Em Neuromancer, livro ao qual se atribui a origem do movimento cyberpunk, o cenário é o espaço cibernético, onde grandes corporações travam uma batalha pelo controle do comércio de drogas pesadas e informações, reproduzindo uma visão pessimista sobre a sociedade do futuro - a exemplo do que fizera nas telas Blade Runner (O Caçador de Andróides; Ridley Scotty, EUA, 1982). Em posição oposta, os cowboys, especialistas em burlar sistemas de segurança com o auxílio de poderosos softwares piratas. Não nos esqueçamos: tudo isso em 1984.

Cyberpunk foi um movimento literário surgido no início dos anos 80, uma espécie de braço paralelo da ficção científica. Uma das diferenças básicas entre um e outro gênero é provavelmente uma das mesmas que separam Júlio Verne e William Gibson. Um tentou descrever um cenário mil anos à frente. Para o outro, algumas décadas foram suficiente para ambientar um futuro repleto de personagens marginalizados, cenários de realidade virtual e vírus altamente destrutivos. No primeiro caso, não foi preciso esperar mil anos. E para o segundo?

Jornal falado

Um detalhe intrigante: o Earth Herald imaginado por Júlio Verne não é impresso. A cada manhã, milhares de assinantes ocupam os inúmeros “gabinetes fonográficos existentes” e por meio de rápidas entrevistas tomam conhecimento dos principais fatos do dia. “Fotografias intensivas” complementam as informações. Do outro lado do telefone, “cada repórter tem diante de si uma série de comutadores, que permitem estabelecer comunicações com esta ou aquela linha telefônica”.

Johnny Mnemonic

Ao contrário de Júlio Verne, William Gibson talvez seja mais conhecido na Internet do que fora dela. Chegou a ganhar um dicionário que procura explicar e decifrar dezenas de termos e tecnologias descritas em seus livros e contos – um dos quais, Johnny Mnemonic, transformado em roteiro de cinema. Quem se interessar em conhecer mais sobre ambos procure em www.google.com. Como expressões chaves, além dos autores e livros citados acima, sugiro “Eterno Adão”, “Ficção científica cyberpunk”, “La era de Idoru” e “Virtual Matrix”.

Coluna publicada originalmente em O Estado de S. Paulo em 19/07/2001

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